quinta-feira, 17 de março de 2011

Tesão deixa tudo mais gostoso, mas é o caminho mais curto para o fim da amizade

Encheu o copo e desceu a bebida com apenas um gole. Bateu na mesa com os punhos fechados e olhou o relógio de ponteiros acima do quiosque dos whiskies baratos. Voltou-se à porta, mas ninguém entrou. Viu-se sozinho, mais uma vez, naquela cidade infernal onde, há pouco, estava assando como um porco e, em instantes, começaria a bater de frio. Voltou-se ao garçom que o observava, como num ritual que se repetia por dias seguidos: “Você é meu amigo”, disse, sem rodeios ou sentimentalismos. “Meu único amigo”, completou.


Ainda calado, o garçom completou novamente o pequeno copo do grande homem, com rosto infantil, que, mais uma vez estava a sua frente. “Esse é por conta da casa”, limitou-se a dizer. Não precisaria do agrado. E, como se ninguém tivesse outra escolha, pôs-se a dizer:

- Não existem mais amigos. Melhores amigos, digo. Daqueles de verdade mesmo, – e tomou um longo gole - sabe? Daquelas que você pode contar pra tudo. Que você chama para comemorar, mas também liga para pedir ajuda ou só para ter alguém que ouça as merdas que você tem para dizer? Pronto. Essa mesmo. Não existe mais.

O jovem rapaz mudou de lugar, sem pronunciar nenhuma palavra, como que para se posicionar melhor para ouvir o que aquele, nem tão bêbado, senhor começava a dizer (ou talvez para tentar espiar a saia levantada da mulher que estava duas mesas atrás, dele, não ficou muito claro). Mas, ouviu:

- Amizade com mulher ainda dá para ser, mas não pode ter tesão nenhum. Pra isso, ou você começa a vê-la como se fosse sua irmã, ou deixe bem claro que não é amigo. O tesão deixa tudo mais gostoso, mas é o caminho mais curto para o fim de uma amizade.

Disse, saboreando mais alguns grãos do amendoim que acompanhava a cana gelada, como a lembrar quantas ex-amigas se enquadravam naquela definição, antes de continuar:

- Mas homem, não. Homem é amigo. Daquele irmão, com quem você briga, xinga, sai no tapa, mas sabe que vai brindar no dia seguinte. E, se, antes disso, alguém vier se meter com você, mesmo com raiva, ele já entra no lugar dando chute pra cima. Simples. Vê uma porção de calabresa pra mim, aí, cara?

Deteve-se. Olhou novamente a porta. Baixou a cabeça, como se, esta, pesasse mais que o normal. Tomou outra dose:

- Amigo tira o celular de você quando você bebe, cara. Agora, mesmo, posso ligar pra quantas raparigas eu quiser e ninguém vai dizer que eu vou me dar mal depois. Ele reclama, chama de veado, diz que você está fazendo tudo errado e aparece antes de todo mundo pra ajudar trocar o guarda-roupa de quarto e a salgar a carne antes dos vizinhos aparecerem pro churrasco. Amigo entende o que a gente pensa... Mesmo sem concordar.

O garçom agora ouvia atento o relato. Reparou que outros dois homens que estavam na bancada também se concentravam mais na fala daquele imenso marmanjo sentimental que nas próprias bebidas.

- O que a gente tem hoje são colegas de trabalho, de futebol. Vocês, da escola, da faculdade e às vezes, até se enganam achando que também tem amigos no puteiro... – Disse, arrancando risos da pequena platéia – Amigo de verdade é irmão. E quando você perde tudo pra vadia da ex, que ainda mantém seus filhos longe, é ele quem diz nada e te leva a um bar para beber, mesmo sem ter o que dizer... Não precisa, não... Acredite, quando você não tem tempo para alguém ou alguém não tem tempo para você, nem para ouvir sua voz numa mísera ligação escondida da esposa que te detesta, não é seu amigo... – Olhou para baixo – Enche aqui, moleque. O copo está furado...

Sentiu-se ainda mais sozinho com aqueles três o olhando. Ia pagar a conta para sair, quando ouviu “Você não tem um amigo desses? Por que a tristeza?”.

- Meu nobre amigo... Morreu hoje... – falou, impassível aos espantos cheios de compaixão e entendimento – Acidente de carro. O veado só vivia correndo muito. Mas era sentimental demais, viu uma raposa e quis desviar. Eu mesmo tinha passado por cima.

Fez-se silêncio. Alguns goles foram completados sem grande entusiasmo. O homem que estava a sua direita perguntou: “E agora, vai fazer o quê?”.

- Vou esperar o corpo esfriar e pegar a mulher dele.

O barulho que se seguiu variava entre gargalhadas e protestos cheios de indignação.

- Amizade é algo raro demais. É o cara encontrar o gêmeo de alma... – disse. E ao perceber que ninguém mais engolia o discurso, continuou – O cara me devia R$ 11 mil, quebrou minha perna num jogo há uns 12 anos, já tinha passado o creu numa de minhas irmãs e a mulher dele é aquela loira que passa aqui na frente com um Ecosport. Sim, aquela dos melões... Não é porque aquele fresco morreu que eu não vou descontar o saldo...

Levantou-se e saiu lentamente sem olhar para trás, sob os olhares surpresos de todos. Talvez pensassem ser apenas mais um papo de bêbado lidando com a dor ou talvez um princípio de inveja se formasse entre eles, afinal eram os melões da Ecosport, não ficou muito claro...

Um comentário:

  1. Adorei!!! Mas pode existir amizade com atração ou até paixão, que é a amizade colorida. =P

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