Não existe ‘ser’ mais problemático e, no Brasil, negligenciado do que as crianças. Primeiro, porque, em geral, são menores, não crianças. Não são ‘meninos’, mas ‘potenciais infratores’. Não criaturas fofas, mas bandidos em formação. Jovens pré-adolescentes de todo o país desenvolvem-se à luz dos veículos de comunicação que apenas enxergam desgraças como forma de chamar a atenção. Por isso, nada melhor que “Acidente com ônibus escolar deixa três feridos e dezoito crianças morrem” para alegrar o dia de um jornalista filho-de-uma-mulher-da-vida.
Não existe propriamente um dia das crianças, mas um período anual de veiculação do comercial das Casas Pio. O feriado, em si, é dedicado a mais uma ‘senhora de quase todos’, não às crianças. Afinal, se elas não trazem arrecadação direta de impostos, por que beneficiá-las com um feriado? Muito melhor fazer uma homenagem a uma santa, coisa que nunca acontece no país!
A história de Aparecida nem é tão mostrada assim. Numa dessas histórias de pescador, um carinha disse, no século XVIII que não tinha pego peixe algum até pescar a imagem da Santa sem cabeça (um bom nome para uma nova santa, não?) e, logo em seguida, conseguir encontrar a cabeça da santa (bom nome de cachaça). A partir de então, tiveram que puxar mais uns trinta barcos de tanto do peixe que pegavam. E o pior é que a galera acreditou na história e foi em frente com a façanha. Duzentos anos depois ‘temos’ uma padroeira, graças a dois pescadores bêbados (um que jogou a imagem no rio e um que apanhou) que conseguiram vender peixe velho, porém ‘abençoado’ para os pobres que buscavam alguma esperança.
O Círio de Nazaré, ainda hoje, arrasta dois milhões de pessoas. Isso para ver uma estátua de meio metro! E pior, que está lá o ano inteiro, mas que o povo só quer ver no dia 12 de outubro! Como pode? O Galo da Madrugada tem que colocar 15 trios elétricos para conseguir a mesma audiência de uma boneca de madeira com quatro vasos laterais! Santo absurdo!
Jesus mesmo dizia ‘venham a mim as criançinhas’ (mas num tom bem distante de Michael Jackson), nunca ‘venham a mim os peixes’ ou ‘as imagens’. Ainda assim, as pequenas notáveis não chamam tanto a atenção, e nem despertam tanto interesse, apesar de serem menos bem tratadas que a Aparecida.
Talvez em algum lugar da história, antes da intervenção da Estrela (que praticamente criou e registrou a data), alguém tenha desmerecido o futuro da data por vislumbrar nossa atual realidade. Nossas crianças são hipocondríacas (do dengo à dengue) e, de certa forma, maníacas-depressivas (mesmo sem ter grana aplicada na Bolsa).
Acredito que oito em dez internautas já receberam o e-mail da última infância feliz. Pois bem, não sei se a ‘minha’ foi a bala que matou Getúlio, mas não tenho do que reclamar. Tinha X-Tudo para crescer a mente e Cavaleiros do Zodíaco para reduzi-la nas mesmas proporções. Eu ainda brincava na rua. Eu também peguei a época da tesoura da Disney que representava bem o futuro egoísta de nossa juventude (a do ‘eu tenho, você nem tem’). Eu ainda conheci jogos de tabuleiro e tive um óculos do Chaves, além de colecionar os brindes da Coca-Cola quando anda faziam sentido.
Eu também acompanhei a derrocada de tudo que se construía. Eu vi o fim da Tv Cultura, o adeus do Mundo de Beckman, o fim de No Mundo da Lua e a despedida de Confissões de Adolescente (quando Deborah Secco, ainda não era Deb Sexxo). Vi também o nascer do apocalipse cultural brasileiro. Vi a importação de Pokemon. Vi a primeira apresentação do É o Tchan (ou Gera Samba, se preferir). Vi o declínio dos Tazos.
Nesse meio tempo, duas coisas marcaram a infância brasileira. A primeira foi a mutação de Xuxa Meneguel. Ela deixou de lado o Xou da Xuxa, que dizia ser para jovens, mas só vendia entre crianças, e passou para a era do Xuxa Só Para Baixinhos 3722, que diz ser para crianças, mas faz sucesso entre os retardados. A segunda, o advento da internet. Essa maravilha digital que transformou a infância em campo digital de crescimento mediado por jogos em rede. Em poucos anos, a Microsoft dará espaço à Babysoft, uma vez que os gênios cybernéticos nascem, crescem e (não) morrem mais depressa que os seres humanos comuns.
Na minha época, montávamos grandes maquetes em isopor e papel, para apresentar a tradicional Feira de Ciências. Evento regado a discursos ‘decorebas’, proferidos a um público que não fazia questão de entender o que era falado. Nas aulas, grandes cadernos decorados com giz de cera e hidrocor (ainda chamávamos assim) reluziam entre as estrelas de bom comportamento e de bom trabalho. Hoje, o Google faz o serviço, a impressora imprime e o trabalho do aluno é lembrar-se de entregar em sala de aula (e quando não lembra, pede para mandar por e-mail).
No máximo até os oito anos de idade, as crianças de hoje já têm definido na cabeça qual opção sexual deverá ser ‘filiada’ e se gostaria de se casar. Questões como número de filhos e emprego, decidem aos dez. Aos doze, já não se consideram mais crianças, pensam na aposentadoria. Aos treze, desistem da aposentadoria. Estão esperando filhos. Aos dezoito, choram, pois já podem ser encaminhados ao presídio comum. Aos trinta e cinco, choram novamente porque a vida não é mais tão simples que quando tinham a idade de seus filhos, que, por sinal, não ouvem e cometem os seus mesmos erros do passado...
O dia 12 de outubro é uma ironia. Requintada e infame. Do gênero que celebra a pureza e a inocência em grandes procissões em um mundo que desconhece o puro e inocente. Um mundo em que inocentes são suspeitos, suspeitos são acusados, acusados merecem morrer e os que merecem morrer acabam eleitos.
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