segunda-feira, 2 de maio de 2011

Missão reconhecimento: O milagre de um 'interiorzín'

Nada revigora mais um homem e o faz valorizar a casa que tem que uma boa viagem a um interior. Aspirar um ar fresco, longe das inúmeras buzinas e do insuportável trânsito, podendo  ‘pegar’ tantas ‘matutas’ quanto tiver tempo. Não tem vida melhor.

O fator mais interessante nessas viagens é observar as diferenças culturais possíveis tão próximas de casa. Não precisa entrar em um avião e passar horas viajando para se ver um povoado totalmente diferente. Além da língua, praticamente não temos nada em comum com algumas comunidades de interior (várias delas, canibais)!

Certa vez, fui visitar uns amigos em uma cidadezinha próxima ao Recife, que prefiro não citar o nome. Gente humilde, receptiva. Não era difícil perceber as diferenças gritantes que tínhamos. Nunca fui do tipo de pessoa que tem fixação por computadores, por exemplo, mas me incomodou que o telefone seja a grande invenção do mundo para eles.
Não bastasse o deslumbramento, mas tem também a ingenuidade. O papo do momento era um jogo na televisão que prometia prêmios para quem acertasse um caça-palavras na madrugada. Brasil inteiro competindo. Mas o pessoal de lá, mais esperto, achava que tinha descoberto a palavra mais rápido que os outros e liga:

Ligação para um celular do Paraná. Aguarda. Se cadastra. Já cinco minutos. Começa a responder perguntas para acumular pontos (senão, não consegue falar com o apresentador). Dez minutos. Já respondeu quase quarenta perguntas, deve estar próximo. O apresentador pára o relógio e diz que ele quase consegue agora. Quinze minutos. Ele pensa que está bem próximo e o apresentador já está falando com ele. Solta o relógio novamente. Faltam poucos segundos. Vinte minutos. O apresentador pára o relógio novamente e dá uma dica. É isso mesmo! A palavra está ali. Solta o relógio. Vinte e cinco minutos. Pensa que já demorou muito e, para conseguir pagar a conta do telefone, agora tem que ganhar o prêmio. Páram o relógio novamente. Trinta minutos. Irritado, perde a paciência, mas agora não pode desistir. Nessa ondinha, passa duas horas e ele lá, até que alguém acerta o caça-palavras e a ‘moça’ do telefone agradece a participação.

Nada melhor para aprender a valorizar o que se tem que ir para um interior brabo. Valorizamos nossos ipods, nossos notebooks, nossos DVDs portáteis e, acima de tudo, nossas privadas. Número dois na ‘brenha’ não é mole (especialmente quando é ‘mole’). Geralmente esse é o momento de saudade de casa. E se não tem luz, então? Pense num desmantelo. Na casa onde fui, tinha uns símbolos da ‘Oi’ nos interruptores:

“Já chegou a Oi por aqui?”
“Isso não é Oi, meu filho, é ‘ói’. Do tipo: ‘ói a luz acesa’, ‘ói a conta de luz’ ou ‘ói tu sendo deserdado, peste’”

Por outro lado, o passeio pode servir para quebrar referenciais antes intocáveis, rever os conceitos. Afinal, nada melhor que calçar um Conga e ir ao bar mais próximo comprar Xaxá e beber Baré Tutti-frutti. Se no Maranhão, experimentar Jesus. Se na Bahia... Bem, se na Bahia, vá para a rodoviária (que lugarzinho foi escolher!). Todos sabem que a Bahia não tem interior. Todos são matutos em todas as cidades e tudo que têm para oferecer além do acarajé, é, claro, o axé.

Melhor que interior, são as histórias de interior. Ali é onde você se entrega à cultura regional. Não existe cidade pequena que não cultue seus próprios chupa-cabras ou cumades fulozinhas. É fato. Mulher do Algodão mesmo, todo mundo já viu.
Em Pernambuco, não tem cidade pequena sem lobisomem, deu até no jornal outro dia. Ninguém nunca vê esse ‘lobisomem’ não, mas ouve seus uivos, especialmente quando cachorros desaparecem. Claro, nesses locais, não sabem o que é um cio, mas a gente ignora.

Lá, eles observam com humor, o que acontece na cidade grande, como se fosse natural. Episódio de cobras em caixas d’água ou de ataques de macacas-aranha em crianças especiais são vistas com naturalidade e humor:

“Olha lá. Essa vai pro Faustão, meu!”
“Não sei porque tanto espanto. Macaco é assim mesmo!”
“É. Lembra quando o jegue de Zé tentou te atacar também? Quando ele tentou te estuprar?”
“Lembro não, João. E só é mulher que é estuprada”
“Então, ‘cê’ lembra quando o mimoso quis botar no teu?”

Essa cidadezinha que fui, tinha todos os elementos clichês que se poderia pensar. O prefeito era dono do principal mercadinho da região. A celebridade deles era um autor famoso, que tinha acabado de publicar sua mais nova obra: a bula do genérico do Neosaldina. E eles tinham seu próprio radialista. No caso, megafonista. Daqueles que colocam o aparelho em cima do carro e saem com o comunicador na boca.
Naquele dia, quem visitava o local era o, então presidente da OAB, Júlio Oliveira, que daria uma palestra (mais para discurso político) no colégio municipal mais requintado, o ‘IV Centenário’. O megafonista, sem dúvida alguma, passeava na praça principal, ao meio-dia, anunciando com toda a pompa de quem sabe o que faz:

“Não percam, minha gente, o nobre discursar de uma de nossas autoridades estaduais. O doutor Julio Oliveira vai fazer sua falácia hoje, às três da tarde, no colégio ive centenário. Ele, que é o presidente do O, do A e do B! Você não pode perder! Eita!”.

Para muitos, se trataria de um caso de pura ignorância. Não para mim. Para mim, aquilo era o retrato ideal daquela comunidade que se restringia à própria lógica. Eles, por exemplo, não ensinavam o Sistema Solar na escola. Deixaram há dois anos. Perguntada, a diretora é categórica:

“E para quê? Vivemos em apenas um planeta. Não vamos sair dele. Eu aprendi que o sistema tinha nove planetas. Meu filho, que tinha dez. Agora a professora tem que dizer que tem oito. Aí você veja, eu vou ensinar aos garotos que as autoridades não sabem nem contar os planetas, que são gigantes? Como posso ter moral para falar depois de contagem de votos, por exemplo?”. Não há argumentos contra a razão.

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